querida júlia,
antes de mergulhar no fim-de-semana - esse período que só alegra os alegres -, queria dizer-te que não me esqueci de ti. eu nunca me esqueço de ninguém. acho que já viveste, vivemos, o suficiente para testemunhares a profunda verdade do que acabei de escrever. eu nunca me esqueço de ninguém. oxalá assim não fosse, mas é assim. o que te queria dizer era que te estou a escrever para te contar uma coisa em especial. hoje fui ao médico - cavalheiro bondoso e educado, negação peremptória daquela miserável lógica retorcida que nos diz que um bom médico tem que ser parente de uma pedra ou de um torcionário. fui ao médico, como acompanhante de alguém que, sei que sabes, é para mim um tesouro. no final, ao pagar a conta, relativamente elevada, essa pessoa tirou dinheiro da carteira - ou tentou. claro que não deixei. depois, conversámos sobre tratamentos, também eles, para aquela pessoa pelo menos, relativamente dispendiosos. voltou a dizer que era com ela a conta. e que o mais certo era ficar pela metade, talvez nem fosse preciso, etc. claro que não deixei e, subtilmente, desviei a conversa. no regresso, ofereceu-me um café, que não pude aceitar, em função de um compromisso profissional. mas registei. sim, querida júlia, eu registo tudo. não sei se já te disse que eu nunca me esqueço de nada. de nada e de ninguém. um maníaco dos detalhes, que perdoa 'os grandes pecados', mas que é pouco tolerante numa escala mais micro. mas o que te queria mesmo dizer não era ainda bem isto. o que te queria dizer era que o dinheiro é obsceno, em certos momentos. tu sabes que sempre tive uma inclinação por miúdas que lutam - por direitos, por valores, por cartilhas éticas exigentes, por acesso ao mundo em pé de igualdade. eu, que vivo com algum conforto, nem sempre terei sabido fazer uma mediação inteligente entre estes dois mundos. sim, querida júlia, o excesso de generosidade pode tornar-se ofensivo, agora percebo. mas não nos desviemos do que é importante: a obscenidade do mundo em que (sobre)vivemos; as desigualdades; a miséria que todos os dias nos fustiga os olhos, em cada esquina desta cidade estropiada. por isso, querida júlia, fiz da minha vida também isto: uma luta surda, titânica, quixotesca, a favor de quem pouco pode, mas muito é. não posso mudar o mundo, bem sei, mas tento mudar a minha casa, as pessoas que estão à distância de um braço, de um abraço, de um telefonema. sou um tolo, fool, esse terno meio nick name com que um dia me crismaram. eu sei tudo isso. mas, qual cavalo de tróia, eu trabalho a partir do sistema, por dentro, desmontando-o. lutando contra a obscenidade. por isso, como já terás reparado, tenho poucos bens materiais. e tu sabes que gosto de coisas bonitas, de casas confortáveis, até de descapotáveis sóbrios, de um fato de corte impecável, de restaurantes excelentes. mas isso, querida júlia, é uma compensação existencial, uma forma de sublimar o muito que me falta. porque, sei-o bem, less will always be more e o segredo são as coisas simples. eu sei que é esse o caminho - o meu caminho. dizia-te, querida júlia, que o dinheiro é obsceno. que nenhum dinheiro do mundo pagaria esses tesouros que me movem - os corações que gostam de mim, os corações de quem eu gosto, e, em dias impossívelmente claros, os corações coincidentes.. por isso te digo agora: vim no carro doente por dentro, a pensar que raio de mundo é este em que a minha persona, enquanto sr. dr. de blaser e voz grossa ('vê-se à légua que sabe das coisas, sr. dr.; paga em dinheiro, sr. dr.?') manda e desmanda, enquanto tiver carteira. e, a meu lado, uma pessoa doente e idosa é apenas mais uma pessoa doente e idosa (temos dúvida se é pessoa, não é?).
sabes, querida júlia, às vezes, eu tenho vergonha. não vos perdôo por alimentarem isto. e não me perdôo por tolerar isto.
querida júlia, desculpa-me. levantei vôo algures. mas tu sabes como eu sou, não sabes? que faria eu sem ti..
- shall we never sink alone -
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