fotograma de 'stalker', de andrei tarkovsky
íntima cicatriz
(ao sr. joaquim manuel magalhães)
lembrava-se,
como se à brutal finitude do tempo
correspondesse
a infinitude delicada da memória.
tomava por seus os céus da catalunha,
emprestadas testemunhas
da sua história trágico-marítima
mais íntima.
a noite caía na temperatura, gelada agora.
trombetas mudas
que ninguém esperava, que ninguém escutava,
um som-silêncio universal.
'a arte de perder não é difícil de dominar',
e tudo isso lhe passava agora à frente,
visão futura indesejada
fazendo-se passar por uma coisa outra.
obscenidades.
como este poema terrível:
escrito no futuro,
mas vivo no presente mais doloroso,
que é sempre o do tempo-mal-passado.
como as
legiões romanas de outrora,
e as senhoras de meia idade agora,
as palavras são enviadas para a morte,
estrelas nos céus de amanhã,
indiferentes à triste sina
ou só má-sorte
de quem cá ficou.
dói o céu que ontem foi derrotado,
batalha sangrenta, metafísica cruel.
as palavras, outra vez:
assassinos a soldo do monstro
a que chamam devir.
tudo o resto:
um rosto amachucado,
um homem de rastos,
o cadáver do futuro decomposto,
amargo travo de açúcar que é já fel.
resta-nos rir.
nós, os que vamos morrer, saudamos-te, imperatriz.