atrás de si, os habituais clientes deixavam de tudo. peúgas sujas, pares de meias por estrear, um ou outro casaco de cabedal, garrafas de mau whisky, todo o género de roupa interior, cintos sem fivela, fivelas sem o respectivo cinto, um arco-íris de objectos sem préstimo evidente, cigarros meio-fumados, cigarros por fumar, cigarros sugados como se disso dependesse amanhã nascer o sol, livros baratos, luxuosas colecções de artigos científicos, exemplares de toda a imprensa portuguesa e de alguma estrangeira, uma dentadura, molhos de chaves, uma canadiana e duas bengalas, sobretudos cossados nos cotovelos, terços e um ou outro missal.
o que ela nunca tinha dado era com um coração em carne viva, deixado para trás, sobre o cobertor encardido.
sim, ela suspeitara desde o mais tenro início - ele era aquele de quem todas as colegas de ofício falavam baixinho, um serial killer muito especial: o homem que semeava corações.
quando, anos depois, ela me contou esta história, achei-a (como sempre a tinha achado, confesso) levemente louca. eu, cínico glacial desde o berço, não poderia acreditar nisso. seria ir contra tudo aquilo para que, intelligent design ou mão-de-ferro em menino, me haviam programado: ser um homem regrado, espartano, uma espécie de quintessência de bom-senso com braços e pernas.
mas dessa vez algo me dizia para acreditar, mesmo que eu não soubesse exactamente de onde vinha esse sopro de fé, essa pulsão improvável e raríssima.
quer dizer, saber eu sabia, não podia era aceitar que soubesse. afinal, frio e cortante, seco e enxuto, como eu me habituara a ser, havia treinado com afinco e zelo inultrapassável, para me apagar a mim próprio da minha própria memória.
o homem que semeara corações não se lembrava já desses dias de outrora. era agora um homem voluntariamente sem memória, na companhia de uma velha amiga de maus costumes mas muito bons fígados. e Deus sabe como estes últimos escasseiam.
levantei-me, de mansinho, e dei-me ao mundo, como a ele havia chegado umas já valentes décadas atrás. nú e sem vícios. de cabeça limpa e sem o menor vestígio de um coração.
(tudo isto é metáfora melhor ou pior manejada, leitora amiga. só as partes do coração é que não. mas isso, diga-me lá, não sabia desde o princípio?)
o sol brilhava agora, vertical e soberano como só ele sabe. acolheu-me nos seus longos e largos braços, como se acolhe um filho que regressa de um ano de incertas aventuras e desabrigo. sem perguntas, sem rudeza, sem brusquidão. com lágrimas e voz embargada e aquela certeza funda de que a vida é possível, outra vez.
o homem que semeava corações ficara lá atrás, no file dos casos insolúveis. daqui a uns quantos anos, não mais seria recordado senão como uma anomalia para a polícia, uma maçada para gente séria e honrada, um desaforo para todos os pragmáticos do mundo, um mito para as novas gerações de senhoras da vida que hão-de suceder às contemporâneas mestres de tão sui generis arte.
um crime perfeito, foram as minhas últimas palavras.
- shall we never sink alone -
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